
Partilha de Bens Imóveis Alienados Fiduciariamente
Introdução
O divórcio, por si só, já impõe significativas transformações na vida dos indivíduos. A dissolução do vínculo conjugal, frequentemente, vem acompanhada da complexa tarefa de partilhar o patrimônio construído em comum. Dentre os bens que compõem esse patrimônio, os imóveis financiados destacam-se por suas particularidades, exigindo uma análise jurídica aprofundada e soluções que harmonizem os interesses dos ex-cônjuges com os direitos de terceiros, especialmente as instituições financeiras.
A alienação fiduciária, uma modalidade de garantia amplamente utilizada no mercado imobiliário, adiciona uma camada de complexidade a essa equação. Nela, a propriedade do bem permanece com o credor fiduciário até a quitação integral do financiamento, sendo o devedor fiduciante mero possuidor direto e titular de direitos aquisitivos sobre o imóvel.
A Partilha de Imóveis Financiados
A partilha de bens imóveis financiados em um divórcio apresenta desafios jurídicos consideráveis, principalmente devido à natureza da alienação fiduciária. Diferentemente de um imóvel quitado, cuja propriedade plena já está consolidada em nome dos cônjuges, o bem alienado fiduciariamente pertence, de fato, ao credor fiduciário (geralmente uma instituição financeira) até a integral liquidação da dívida. Nesse cenário, os ex-cônjuges são titulares de direitos aquisitivos sobre o imóvel, e não da propriedade em si. Essa distinção é crucial e frequentemente causa equívocos na interpretação e aplicação da lei.
Ao se falar em partilha de um imóvel financiado, não se está partilhando o bem em sua totalidade, mas sim os direitos e obrigações decorrentes do contrato de financiamento. Isso inclui, primordialmente, os valores já adimplidos (as parcelas pagas) e a responsabilidade pelas parcelas futuras. A partilha deve recair sobre esses direitos aquisitivos, e não sobre a propriedade do imóvel, que ainda não se consolidou nas mãos dos devedores fiduciantes. Essa compreensão é fundamental para evitar conflitos com o credor fiduciário e garantir a segurança jurídica das transações.
Um dos principais entraves na partilha desses bens é a necessidade de anuência da instituição financeira para qualquer alteração substancial no contrato de financiamento, como a transferência da titularidade ou a exclusão de um dos mutuários. A Lei nº 9.514/97, que rege o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel, é clara ao estabelecer que o fiduciante, com anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações [1]. Essa exigência visa proteger o credor, assegurando que a capacidade de pagamento dos novos devedores seja avaliada e aprovada, mantendo a solidez da garantia.
Desconsiderar a anuência do credor fiduciário pode resultar na ineficácia da partilha em relação à instituição financeira, que não estará vinculada a um acordo do qual não participou. Isso significa que, mesmo que os ex-cônjuges acordem sobre quem ficará com o imóvel e quem pagará as parcelas, o banco continuará a cobrar ambos os devedores, caso o contrato original não seja alterado. A complexidade aumenta em caso de inadimplência, pois o credor fiduciário pode iniciar procedimentos de execução extrajudicial, buscando a consolidação da propriedade em seu nome e a posterior venda do imóvel para satisfazer a dívida [2].
Portanto, a partilha de bens imóveis financiados exige uma abordagem que contemple não apenas os interesses dos ex-cônjuges, mas também os direitos e a posição do credor fiduciário. A jurisprudência tem buscado equilibrar esses interesses, permitindo a homologação de acordos que versem sobre os direitos disponíveis dos ex-cônjuges, desde que respeitados os direitos de terceiros e as formalidades legais.
Isso significa que, embora o acordo entre os ex-cônjuges sobre a divisão dos valores pagos e a responsabilidade pelas parcelas futuras seja válido entre eles, sua eficácia perante o banco está condicionada à aprovação deste. A pretensão de alteração contratual, portanto, deverá ser submetida à instituição financeira para sua devida anuência.
Registro da Escritura de Divórcio com partilha de bens alienados fiduciariamente
Embora a partilha dos direitos possa ser realizado no divórcio, atribuindo exclusivamente a um dos divorciandos os direitos relativos ao imóvel alienado fiduciariamente, mesmo sem a credor fiduciário, o mesmo não se pode afirmar quanto ao registro desta partilha perante o Serviço de Registro de Imóveis competente [4].
A Lei nº 9.514/97, em seu artigo 29, é taxativa ao estabelecer a obrigatoriedade da intervenção do credor fiduciário para a transmissão dos direitos sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia: “O fiduciante, com anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações” [1].
Para a regularização da divisão dos direitos dos fiduciantes perante o fólio real, é indispensável a complementação do título com a anuência expressa do credor fiduciário, em respeito à lei e ao princípio da continuidade registral. A ausência dessa anuência pode gerar um óbice intransponível para o registro da partilha, impedindo a regularização da situação do imóvel no fólio real.
Em primeiro lugar, é fundamental compreender que a partilha recai sobre os direitos aquisitivos que os ex-cônjuges possuem sobre o imóvel, e não sobre a propriedade plena do bem. Isso significa que o acordo de partilha deve versar sobre os valores já pagos do financiamento e a responsabilidade pelas parcelas futuras. A tentativa de partilhar o imóvel em si, sem a devida atenção à natureza da alienação fiduciária, pode gerar entraves e a ineficácia do ato perante o credor fiduciário e o registro de imóveis.
A ausência de anuência do credor fiduciário acarreta sérias implicações. Primeiramente, o credor não estará obrigado a reconhecer o acordo de partilha, podendo continuar a cobrar ambos os ex-cônjuges pela dívida. Em caso de inadimplência, o credor fiduciário poderá executar a garantia, consolidando a propriedade do imóvel em seu nome e promovendo a sua venda em leilão, independentemente do que foi acordado entre os ex-cônjuges. Além disso, a falta de anuência impede o registro da partilha no fólio real, mantendo a situação do imóvel irregular e dificultando futuras transações, como a venda ou a obtenção de novos financiamentos [4].
Referências
[1] Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm
[2] TJPR – 11ª Câmara Cível – 0027742-49.2024.8.16.0030 – Foz do Iguaçu – Rel.: DESEMBARGADOR RUY MUGGIATI – J. 07.04.2025. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/ (Acesso em 13 de julho de 2025)
[3] TJPR – 11ª Câmara Cível – 0027742-49.2024.8.16.0030 – Foz do Iguaçu – Rel.: DESEMBARGADOR RUY MUGGIATI – J. 07.04.2025. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/ (Acesso em 13 de julho de 2025)
[4] 1ª VRP/SP – Processo Digital nº: 1066883-97.2023.8.26.0100 – Dúvida – Registro de Imóveis – Formal de partilha – Imóvel alienado fiduciariamente – Anuência do credor – Necessidade – Dúvida procedente. (DJe de 05.07.2023 – SP). Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/ (Acesso em 13 de julho de 2025)
