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A Escritura Pública de Antecipação de Depoimento: Uma Análise da Atuação Notarial e sua Relevância Processual

A Escritura Pública de Antecipação de Depoimento: Uma Análise da Atuação Notarial e sua Relevância Processual

Introdução

O ordenamento jurídico brasileiro, em sua constante evolução, busca aprimorar os mecanismos de produção de prova, garantindo celeridade, segurança jurídica e a efetividade da justiça. Nesse contexto, a Escritura Pública de Antecipação de Depoimento surge como um instrumento inovador e de grande valia, permitindo que a prova testemunhal seja colhida de forma extrajudicial, perante um tabelião de notas, antes mesmo do ajuizamento de uma ação ou incidentalmente a ela.

Esta modalidade de produção antecipada de prova, prevista no Art. 1.242 do Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina, que regulamenta o Art. 453, I, do Código de Processo Civil, confere ao ato notarial um papel fundamental na preservação da memória e na garantia da futura utilização da prova em sede judicial.

Este artigo tem como objetivo analisar o funcionamento da Escritura Pública de Antecipação de Depoimento, detalhando os procedimentos envolvidos, adaptando os dispositivos do Código de Processo Civil à atuação do tabelião e ressaltando a importância de se observar os requisitos legais e o contraditório, a fim de assegurar a validade e a utilidade da prova para fundamentar decisões judiciais, inclusive em futuras ações penais. Será abordada, ainda, a relevância da Súmula nº 455 do Superior Tribunal de Justiça, que exige fundamentação concreta para a produção antecipada de provas, indo além do mero decurso do tempo.

Base Legal da Antecipação de Depoimento Notarial

A possibilidade de antecipação de depoimento perante tabelião de notas encontra seu fundamento no Art. 1.242 do Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina, que estabelece:

Art. 1.242. A produção antecipada de prova testemunhal de que trata o art. 453, I, do Código de Processo Civil, poderá ser produzida perante tabelião de notas.

Este dispositivo legal é de suma importância, pois eleva o tabelião de notas à condição de agente apto a colher a prova testemunhal de forma antecipada, conferindo-lhe fé pública e, consequentemente, validade ao ato. A remissão ao Art. 453, I, do Código de Processo Civil (CPC) é crucial, pois integra a norma notarial ao sistema processual civil, garantindo que a prova colhida extrajudicialmente possa ser utilizada em um processo judicial futuro.

Os parágrafos do Art. 1.242 complementam e detalham as condições para a realização dessa antecipação:

  • Serão observadas as normas contidas nos arts. 456 a 463 do Código de Processo Civil.

Este parágrafo estabelece a necessidade de observância das normas processuais civis que regem a produção da prova testemunhal. Embora a colheita do depoimento ocorra em ambiente extrajudicial, a essência e os princípios que norteiam a inquirição de testemunhas em juízo devem ser respeitados. Isso inclui aspectos como a qualificação da testemunha, o compromisso de dizer a verdade, a forma de formulação das perguntas e a documentação do depoimento. A adaptação dessas normas à realidade notarial será um ponto central da análise subsequente.

  • O depoimento antecipado poderá ser prestado incidentalmente ou antes do ajuizamento da ação.

Este parágrafo esclarece o momento em que a antecipação de depoimento pode ocorrer. A flexibilidade é uma das grandes vantagens desse instituto, permitindo que a prova seja produzida quando há risco de seu perecimento ou dificuldade de sua produção futura, seja porque a ação principal ainda não foi proposta (o que é comum em casos de urgência ou para evitar a judicialização desnecessária), seja porque já existe um processo em curso e a antecipação se faz necessária para instruí-lo.

  • Em havendo mais de um declarante, cada depoimento corresponderá a uma escritura.

Por fim, este parágrafo estabelece uma regra prática importante para a formalização dos depoimentos. A individualização de cada depoimento em uma escritura pública distinta garante a clareza, a organização e a segurança jurídica do ato, facilitando a sua posterior utilização em juízo. Cada escritura, portanto, será um documento autônomo, com a fé pública inerente ao ato notarial, atestando a veracidade das declarações ali contidas.

A seguir, procederemos à adaptação dos artigos do Código de Processo Civil mencionados, demonstrando como suas disposições podem ser aplicadas e interpretadas no contexto da Escritura Pública de Antecipação de Depoimento, sob a égide da atuação do tabelião de notas.

Adaptação dos Dispositivos do Código de Processo Civil à Atuação Notarial

Conforme o Art. 1.242, § 1º, do Código de Normas, a produção antecipada de prova testemunhal perante tabelião de notas deve observar as normas contidas nos Arts. 456 a 463 do Código de Processo Civil. É fundamental, contudo, adaptar a interpretação desses dispositivos à realidade extrajudicial, onde o tabelião assume um papel análogo ao do juiz na condução da inquirição, mas com as particularidades de sua função notarial.

Art. 453 do CPC: A Possibilidade da Antecipação

Art. 453. As testemunhas podem prestar depoimento antecipadamente;

Este artigo é a base da produção antecipada de prova testemunhal no CPC. No contexto da escritura pública, ele legitima a colheita do depoimento antes do momento processual usual. A atuação do tabelião, nesse caso, é a de formalizar essa antecipação, garantindo que o depoimento seja colhido de forma segura e documentada, preservando a memória da prova para uso futuro. A antecipação notarial é uma manifestação da desjudicialização e da busca por eficiência, permitindo que a prova seja produzida em um momento oportuno, especialmente quando há risco de perecimento da prova, como a idade avançada da testemunha, uma doença grave, ou a iminência de uma viagem prolongada.

Art. 457 do CPC: Qualificação e Declarações da Testemunha

Art. 457. Antes de depor, a testemunha será qualificada, declarará ou confirmará seus dados e informará se tem relações de parentesco com a parte ou interesse no objeto do processo.

No ambiente notarial, o tabelião será o responsável por realizar a qualificação da testemunha. Isso inclui a coleta de dados pessoais como nome completo, nacionalidade, estado civil, profissão, endereço, número de documento de identidade (RG) e CPF. Além disso, o tabelião deverá indagar à testemunha sobre a existência de relações de parentesco com as partes envolvidas (ainda que as partes não estejam formalmente definidas em um processo judicial, mas sim como interessados na futura demanda) ou qualquer interesse no objeto da futura ação. Essas informações são cruciais para a avaliação da credibilidade da testemunha e para a eventual arguição de impedimento ou suspeição em um processo judicial futuro. O tabelião, com sua fé pública, atestará a veracidade das informações prestadas pela testemunha no momento da qualificação, o que confere maior robustez à prova.

Art. 458 do CPC: O Compromisso de Dizer a Verdade

Art. 458. Ao início da inquirição, a testemunha prestará o compromisso de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado. Parágrafo único. O juiz advertirá à testemunha que incorre em sanção penal quem faz afirmação falsa, cala ou oculta a verdade.

No contexto da escritura pública, o tabelião assume o papel de advertir a testemunha sobre o compromisso de dizer a verdade e as consequências penais de uma declaração falsa, calar ou ocultar a verdade (falso testemunho, Art. 342 do Código Penal). Embora não seja um juiz, a fé pública do tabelião e a natureza solene do ato notarial conferem seriedade ao compromisso. A lavratura da escritura pública, por si só, já é um ato formal que imprime a devida gravidade à declaração. O tabelião deverá registrar expressamente na escritura que a testemunha foi advertida sobre as implicações legais de suas declarações, reforçando a validade e a confiabilidade do depoimento para fins judiciais.

Art. 459 do CPC: Formulação das Perguntas e Condução da Inquirição

Art. 459. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, começando pela que a arrolou, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com as questões de fato objeto da atividade probatória ou importarem repetição de outra já respondida. § 1º O juiz poderá inquirir a testemunha tanto antes quanto depois da inquirição feita pelas partes. § 2º As testemunhas devem ser tratadas com urbanidade, não se lhes fazendo perguntas ou considerações impertinentes, capciosas ou vexatórias. § 3º As perguntas que o juiz indeferir serão transcritas no termo, se a parte o requerer.

Este é um dos artigos que exige maior adaptação. No ambiente notarial, as partes (ou seus procuradores) formularão as perguntas diretamente à testemunha, sob a supervisão do tabelião. O tabelião, nesse caso, atuará como um garantidor da legalidade e da pertinência das perguntas, indeferindo aquelas que forem indutivas, impertinentes, capciosas ou vexatórias, ou que configurem repetição de perguntas já respondidas. Embora não possua o poder jurisdicional do juiz, o tabelião, em sua função de fiscal da legalidade, deve zelar pela integridade do depoimento. As perguntas indeferidas, se a parte requerer, deverão ser transcritas na escritura, garantindo a transparência do ato. A urbanidade no tratamento da testemunha é um princípio que deve ser rigorosamente observado pelo tabelião e pelas partes, assegurando um ambiente respeitoso para a colheita da prova. O tabelião também poderá, se julgar necessário para a clareza do depoimento, formular perguntas complementares, assim como o juiz o faria.

Art. 460 do CPC: Documentação do Depoimento

Art. 460. O depoimento poderá ser documentado por meio de gravação. § 1º Quando digitado ou registrado por taquigrafia, estenotipia ou outro método idôneo de documentação, o depoimento será assinado pelo juiz, pelo depoente e pelos procuradores. § 2º Se houver recurso em processo em autos não eletrônicos, o depoimento somente será digitado quando for impossível o envio de sua documentação eletrônica. § 3º Tratando-se de autos eletrônicos, observar-se-á o disposto neste Código e na legislação específica sobre a prática eletrônica de atos processuais.

No contexto da escritura pública, a documentação do depoimento é inerente à própria natureza do ato notarial. O depoimento será lavrado por escrito na forma de escritura pública, que é um documento dotado de fé pública. Além da forma escrita, é plenamente possível e recomendável que o depoimento seja documentado por meio de gravação (áudio e/ou vídeo), desde que com o consentimento de todos os envolvidos. Essa gravação, que pode ser anexada à escritura ou referenciada nela, confere maior fidelidade ao depoimento e pode ser um valioso recurso para dirimir dúvidas futuras. A escritura, uma vez lavrada, será assinada pelo tabelião, pela testemunha (depoente) e pelos procuradores das partes (se presentes), atestando a conformidade do conteúdo com o que foi declarado. As disposições sobre autos eletrônicos também se aplicam, de forma que a escritura e a gravação podem ser disponibilizadas em formato digital, facilitando sua integração a processos eletrônicos.

Art. 463 do CPC: Natureza Pública do Depoimento

Art. 463. O depoimento prestado em juízo é considerado serviço público. Parágrafo único. A testemunha, quando sujeita ao regime da legislação trabalhista, não sofre, por comparecer à audiência, perda de salário nem desconto no tempo de serviço.

Embora o depoimento antecipado perante tabelião não seja prestado ‘em juízo’ no sentido estrito, ele possui uma natureza de interesse público, pois visa à formação de prova para um futuro processo judicial. A fé pública do tabelião e a relevância da prova para a busca da verdade real conferem ao ato notarial um caráter de serviço público. Quanto ao parágrafo único, a analogia pode ser feita no sentido de que a testemunha que comparece ao tabelionato para prestar depoimento antecipado, em razão da relevância do ato para a justiça, não deveria sofrer prejuízos em sua relação de trabalho. Embora não haja uma previsão legal expressa para o ambiente notarial, o princípio que subjaz a este artigo deve ser considerado, incentivando a colaboração da testemunha sem que ela seja penalizada por cumprir um dever cívico.

Requisitos Judiciais e o Contraditório: Garantindo a Validade da Prova Notarial

A Escritura Pública de Antecipação de Depoimento, embora colhida extrajudicialmente, destina-se a produzir efeitos em um processo judicial futuro. Por isso, é imperativo que sua produção observe não apenas as formalidades notariais, mas também os requisitos e princípios processuais que garantem a validade e a utilidade da prova em juízo. Dois aspectos são cruciais nesse sentido: a fundamentação da necessidade da produção antecipada e a observância do contraditório.

A Necessidade de Fundamentação Concreta: A Súmula nº 455 do STJ

A produção antecipada de provas, seja em juízo ou perante tabelião, não pode ser um ato arbitrário ou desprovido de justificativa. A Súmula nº 455 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é clara ao estabelecer que:

Súmula nº 455 do Superior Tribunal de Justiça: a decisão que determina a produção antecipada deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo.

Embora a súmula se refira à ‘decisão que determina’, e no caso da antecipação notarial não haja uma decisão judicial prévia, o espírito da súmula deve ser aplicado por analogia. Isso significa que a parte que requer a antecipação do depoimento perante o tabelião deve apresentar uma justificativa plausível e concreta para essa medida. O tabelião, ao lavrar a escritura, deve fazer constar essa justificativa no preâmbulo do ato, demonstrando a relevância da antecipação. Exemplos de fundamentação concreta incluem:

  • Risco de perecimento da prova: A testemunha é idosa, está gravemente enferma, ou possui planos de viagem para local incerto e não sabido, o que inviabilizaria sua oitiva futura.
  • Dificuldade de produção futura: A testemunha reside em local de difícil acesso, ou há receio de que sua memória se deteriore com o tempo, prejudicando a fidelidade do depoimento.
  • Necessidade de conhecimento prévio dos fatos: A parte precisa do depoimento para avaliar a viabilidade de uma ação, para formular um pedido mais preciso, ou para evitar a propositura de uma demanda desnecessária.

O mero argumento de que o tempo passa não é suficiente para justificar a antecipação. A finalidade é evitar que a prova se perca ou se torne inviável, garantindo o direito à produção probatória e a busca pela verdade real. A ausência de uma fundamentação concreta pode, inclusive, levar à desconsideração da prova em um processo judicial futuro, comprometendo todo o esforço e investimento na sua produção.

O Contraditório Judicial: Essencial para a Validade da Prova

O princípio do contraditório é um dos pilares do devido processo legal e deve ser observado, na medida do possível, mesmo na produção antecipada de provas extrajudiciais. Embora o tabelião não tenha o poder de compelir a parte contrária a participar do ato, é fundamental que a parte requerente da antecipação demonstre que tentou cientificar a parte adversa sobre a realização do depoimento. A presença da parte contrária, ou de seu procurador, durante a colheita do depoimento perante o tabelião, permite:

  • A formulação de perguntas: A parte adversa terá a oportunidade de inquirir a testemunha, esclarecendo pontos de interesse e confrontando as declarações.
  • A fiscalização da inquirição: A presença garante que as perguntas sejam formuladas de forma adequada, sem indução ou coação, e que o depoimento seja colhido de forma imparcial.
  • A arguição de impedimentos ou suspeições: A parte adversa poderá, no momento oportuno, arguir eventuais impedimentos ou suspeições da testemunha, que podem afetar a credibilidade do depoimento.

Caso a parte adversa não compareça, mesmo tendo sido cientificada, a prova não perde sua validade, mas a ausência de contraditório no momento da produção pode ser objeto de questionamento em juízo. O ideal é que a cientificação seja feita por meios que comprovem o recebimento, como notificação extrajudicial por cartório de títulos e documentos, ou e-mail com aviso de recebimento. O tabelião deve registrar na escritura se a parte contrária foi cientificada e se compareceu ou não.

Respeitados esses requisitos e o contraditório judicial, a prova colhida por meio da Escritura Pública de Antecipação de Depoimento terá grande utilidade e validade para fundamentar a decisão judicial na futura ação, inclusive em sede penal, onde a prova testemunhal é de suma importância. A fé pública do tabelião, aliada à observância dos princípios processuais, confere à prova notarial a robustez necessária para sua plena utilização no âmbito judicial.